segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Homens-águia e Homens-urubu

Existem, abaixo do céu, dentre outras várias formas de se categorizar, duas espécies de homens: a do homem-águia e a do homem-urubu. Explico. O homem-urubu é aquele que lhe basta a decomposta e fétida porção carnal para sua satisfação. A carniça lhe agrada e é por ela que direciona suas investiduras em busca da sua saciedade. Não tem muito critério, não é de selecionar e não sabe diferenciar o filé da carne podre. Anda por aí comendo qualquer coisa, igualando-as à carniça, nivelando-as por baixo. Não sabe curtir um filé saboreando-o em todos os seus inigualáveis paladares, come-o como se fedesse, como uma carniça qualquer. Contudo, para salvação da humanidade e glória de toda evolução, existe o homem-águia. Este, ao contrário daquele, voa por ares insondáveis com olhar no horizonte, e não é qualquer mera distração que o faz retirar os olhos deste infinito. É preciso uma presa especial para que, por alguns instantes, ele retenha esta sede pela aurora e se digne a mergulhar de cabeça num salto profundo e hábil, além de fatal, para atingir seu intento alimentar. Só o filé é capaz de mobilizar o homem-águia a tão dedicada e investida atitude. E ele o reconhece de longe, diferenciando-o do morto e deteriorado repasto predileto do urubu. Assim, é fácil observar que o homem-águia arrebata, tira os pés do chão, eleva o filé aos céus, fazendo-o voar e experimentar deste mistério que paira entre as nuvens e estrelas distraídas. Enquanto, o homem-urubu, este infame, se serve no chão, fazendo a presa se sentir rasa e suja como o terreno que lhe serve como prato para tal banquete nefasto. O homem-águia é raro, não se encontram muitos por aí. A águia precisa de uma área territorial de uma circunferência de quilômetros. Enquanto o homem-urubu anda em bandos. São muitos e por toda parte que há carniça, lá estão eles. Há momentos milagrosos na natureza, e um destes é quando vários homens-águia andam juntos, há de saber usufruir-se dos excepcionais mistérios ecológicos. Geralmente, por falta de companhia, andam com os homens-urubu, mas uma águia nunca será um urubu, há de se fazer uma criteriosa distinção. Ainda, observa-se que o homem-águia é, sobretudo, um forte. A águia é corajosa, não se importa com o quão grande e vivaz é a presa, e difere-lhe ataques certeiros e dotados de ímpar sagacidade e com tamanha intensidade que as deixam sem ação. Em contrapartida, o urubu é covarde, esperando a hora de mórbida - e/ou alcoólica- fraqueza para agir ardilosamente atacando pelas fragilidades cadavéricas de uma presa sem tanta vida. Ora, não disserto tão acidamente para endemonizar os urubus. Eles têm seu lugar e, infelizmente, sua função na cadeia alimentar. São frutos de suas experiências passadas, de desajustados cativeiros-lar que promoveram distorcidas criações, maneiras pequenas de enxergar a vida, dentre vários outros motivos possíveis. Posso afirmar, até, que todos temos estas duas dimensões. O homem-urubu também possui um quê de águia, mas acaba não sabendo o que fazer com isto, e o homem-águia tem um pouco de urubu do qual não consegue se desfazer. Escrevo alardeado porque não há problema no fato do urubu servir-se do filé, seria até bom que só existisse o filé. O prejuízo é do urubu se ele não sabe distingui-lo da carniça. Complicado é quando o filé se passa por carniça. Este é o problema. Quando o filé prefere misturar-se à terra e abandonar seu frescor e vivacidade, deixa apagar o brilho dos seus olhos para entregar-se sem luz própria em meio ao fedor de uma refeição desastrada. Ao invés, poderia misturar-se ao vento e vislumbrar o infinito do vôo que a águia poderia lhe proporcionar, e com esta fazer um só, tornando-se alimento revigorante e parte imprescindível que completa o vazio que mesmo o horizonte não preenche na águia. Seria alimento, mas reconheceria que não é mais nem menos que a águia, apenas parte de um projeto bem maior. Não quero empregar com esta metáfora brincante um discurso machista onde somos vorazes predadores e vocês, mulheres, meras presas. É apenas uma forma de dizer que só há razão em ser águia, se por vocês, filés. Portanto, antes que comece a feder, seja o filé que você nasceu para ser.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Perguntas que não mentem.


De quanto silêncio se faz um ausente?
Em que vazios se perde a hora de falar?
Frase a frase, por cada olhar indiferente,
No tardio estrebuchar do perdedor assente.
Quantas tantas mil palavras irão bastar
Para calar o gesto que não mente?

Que parte do que é seu, você não sente?
Quanto eus hão em você sem explicar?
É um outro que lhe habita, insipiente.
O estranho que faz partir, sem exitar.
Quantas tantas mil palavras irão bastar
Para entender o gesto que não mente?

De quanto juízo pouco faz-se o demente?
E quais intentos loucos são para perdoar?
Todo são carrega o alheio em sua mente,
Que nem razão ou loucura vão alcançar.
Quantas tantas mil palavras irão bastar
Para julgar o gesto que não mente?

Todos num só, estranho, louco e ausente,
Cansados, dispersos, perdidos, sem lar
Imersos, sentidos, unidos, uma toda gente,
Um povo inteiro, o mesmo corpo doente.
Quantas tantas mil palavras irão bastar
Para esquecer o gesto que não mente?

(Lisboa, 22 de abril de 2012)

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Morte, prenúncio da vida

Foi-se a alma descansar, cansada de tanto fazer nada. Ficou a vontade, sem ter onde gastar.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Linha 742

Entra uma senhorinha, já bastante idosa, sendo erguida por populares que a deixam no ônibus e partem, na certa aguardavam na mesma parada.
Eis que a mesma senta ao lado de um senhor com longos cabelos e as vestes bastante degradadas, um dos muitos pedintes que existem por estas ter...ras lisboetas, apesar do ônibus vazio e nesta parte do automóvel serem quatro bancos vazios, dois bancos de frente, voltados, para outros dois.
De pronto, o senhor levanta, e senta à frente da senhorinha, saindo do seu lado, no que inicia um encontro de existências espetacular:

- Senhora, saí de perto para que meus piolhos não caiam em cima da senhora.
- Ah, obrigado, não precisava.
- Corrijo-me: senhora, não, menina!
- Ah, sim. Já sou uma menina de novo.
- Não sei o que faço para que me larguem.
- Nesta idade, nem os piolhos me querem. Mas, obrigado. Deixe-os aí, te fazem mal?
- Acredito que não, minha cabeça com ou sem piolho sempre está a coçar.
- Então, deixe-os aí, se querem estar contigo. Não se pode ser muito exigente.

E depois de um riso alto, que fez todo o ônibus percebê-lo, envergonhou-se e voltou a falar baixo:

- Mas assim incomodo as senhorinhas como a senhora!
- Sim, pode ser. Mas sempre incomodamos alguém. Deixe-os aí.
- Tudo bem, não tenho muito o que fazer mesmo. Chegou minha paragem, senhora. Passar bem! A menina é muito gentil.
- O gajo é muito simpático e educado.
- "Até mais, senhora!" Falou, enquanto levantava-se.
- "Felicidades!" Respondeu a senhora, como quem deseja isso para mais alguém do que ele.

Ele pára, ouve e seu olhar vagueia como quem procura o significado dessa palavra:

- Ah, sim, sim, felicidades.. obrigado.

E seus olhos só pararam de vaguear quando focaram o interior do lixeiro que escavava na parada, enquanto o ônibus partia e a menina sentada no banco ouvia o eco de suas palavras dentro de si e achava graça por perceber que havia tempos não era tratada de forma tão delicada, e o tinha sido por alguém a quem a vida negara
tanta delicadeza.



*Diálogo presenciado no ônibus 742, sentido Charneca, em Lisboa, essa semana (devidamente traduzido para o português do Brasil).

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Saudades, malas e outras coisas para guardar.

Saudade é arrumar as malas, as que não vão aos aviões nem à parte de trás dos automóveis, mas que nos fazem tomar decisões. Escolhas difíceis sobre o que nos acompanhará ou deixará de fazer parte da nossa história, quando ao partir de sempre - de quem fomos para o que seremos - a bagagem tiver que ser diminuída, pois já pesa no caminho.

E aí, sem tanta preparação, vem a dor inadvertida porque aquela roupa preferida ou a máscara encardida, de repente, não servem mais para onde se quer chegar. E o penduricalho bonito, comprado para te enfeitar, já não tem tanto efeito, agora, vendido ao bazar, porque aquilo é mesmo só acessório, o principal é você. Bonito mesmo é você.

Algumas daquelas coisas que fizeram você parecer você durante um tempo, já não dizem nada dessa pessoa que você quase escondeu atrás de um terno caro de risca de giz ou um vestido estampado hippie chic. E o desconforto por não caber mais nas coisas de sempre dá espaço ao alívio de não sentir o apertado das teimosias que já pareciam fardas.

Saudade dói. Seja na vermelhidão do sutien apertado, seja no calo do sapato inédito. Ora nas marcas antigas que ainda não nos deixaram, ora no novo que se espreme para acomodar.

Mas também é revisitar a história de cada coisa, os momentos escondidos nas manchas daquela calça desbotada, os carinhos daquela camisa de “ficar em casa”, a roupa íntima que de tão velha ganhou o direito de não ser abandonada. O pijaminha tosco que de alguma forma absurda te deixa sexy.

É ver que o que é importante, acaba ficando na mala de algum jeito, acompanha nossos loucos caminhos durante a vida, mesmo em fotografias no fundo falso desses depositários de nossas esperanças. A estar conosco, resistindo, sem que leiam suas etiquetas de “FRÁGIL”, permeáveis aos baldes de água fria, desconsiderando até o veneno da naftalina, até que nossos remendos sejam um só, mala e gente, e de cada um só reste o pó, uma alma livre e as memórias indecentes da mais absurdas das felicidades.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Tamarindo

Quisera voltar aos puros de outrora
E, assim, poder ver de novo, e bem
O leve reinado da beleza, como aurora
Da escuridão saindo, em vagões de trem
De rumos e trilhos antigos, esquecidos
Partindo ao raiar dos tempos de sempre
Desbravando montanhas, ensandecidos
Vagões do presente nascidos em seu ventre
De útero fumarento rasgado em passados
Que voltam cheirando a sãs lembranças
Da nostalgia que traz o sabor dos melados
Do barulho que sai do lindo zoar das crianças
Nos bancos em praças de pipoqueiros sorrindo
E namorados, em lábios, com gosto de tamarindo.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Você

Você, pequena em meus braços
Gigante em meu peito, abarrotado de
Você.
Você, onde me perco de enlaços
Labirinto de desejos, encontrado em
Você.
Você, entre estrelas, lua e espaços
Sonho ao meio dia, bem acordado em
Você.
Você, entre lembranças e lapsos
Tempo esquecido, apaixonado por
Você.